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Entre o Céu e o Sal: A Viagem Que o Deserto do Atacama Me Deu

  • Foto do escritor: R. Scharf
    R. Scharf
  • 12 de out.
  • 5 min de leitura

Recentemente, fiz uma viagem que mudou a forma como vejo a vida — uma travessia ao coração do Deserto do Atacama. Mais do que uma simples aventura, foi um reencontro comigo mesma, uma imersão em silêncio, resistência e beleza bruta. O Atacama não é apenas um lugar no mapa; é uma lição viva de sobrevivência, de resiliência e de como, mesmo no mais seco e inóspito dos solos, pode brotar alguma forma de vida.


Para quem não conhece, o Deserto do Atacama está localizado no norte do Chile, estendendo-se também por partes da Bolívia, Argentina e Peru. É considerado o deserto mais árido do planeta. Existem áreas onde não chove há mais de 500 anos. Pense nisso por um momento: meio milênio sem uma gota de chuva. O que pode viver em um lugar assim? Que tipo de alma habita essa terra seca, que desafia a própria lógica da vida?


A resposta é surpreendente: muito mais do que se imagina.


A aridez extrema do Atacama tem uma explicação geográfica fascinante. Ele está situado entre duas grandes cordilheiras: de um lado, a Cordilheira Domeyko, uma cadeia montanhosa seca, sem neve, que funciona como uma muralha entre o deserto e o Oceano Pacífico, impedindo que a umidade marítima alcance o interior. Do outro lado, a imponente Cordilheira dos Andes, com seus picos nevados, barra a entrada da umidade que vem da floresta amazônica. O resultado? Um deserto quase estéril — quase.


San Pedro de Atacama, a cidade base para explorar a região, parece uma miragem. Pequena, rústica, construída com adobe, é como um oásis cultural cercado por uma paisagem surreal. Conversando com guias locais, ouvi lendas e histórias fascinantes sobre como, há milhões de anos, o mar cobria grande parte do que hoje é deserto. Quando a água evaporou, restaram apenas os sais, os minerais, e uma terra que brilha ao sol como se tivesse sido polvilhada com cristais. O Salar de Atacama, por exemplo, é uma imensidão branca que reflete o céu, como se você estivesse andando por entre nuvens.

Mas o que mais me tocou nessa viagem não foram apenas os cenários — embora eles sejam absolutamente espetaculares — mas sim o paradoxo da vida. Em um lugar onde tudo parece morto, há uma vitalidade invisível que pulsa em cada grão de areia.

Nos lagos salinos, de águas calmas e cores que vão do turquesa ao verde esmeralda, vivem pequenos organismos, quase microscópicos, que alimentam flamingos andinos. Essas aves, com suas penas rosadas e movimentos elegantes, parecem flutuar entre o real e o sonho. Elas se alimentam de algas que só sobrevivem ali, em condições extremas de salinidade. Mais ao alto, nas zonas de maior altitude, vi vicuñas correndo soltas, desafiando o frio cortante e o ar rarefeito. São parentes silvestres das lhamas, e seu pelo é um dos mais finos e valiosos do mundo. Elas sobrevivem comendo os poucos vegetais que ousam crescer naquelas altitudes onde o oxigênio falta, mas a resistência sobra.

O Atacama é um lembrete de que a vida sempre dá um jeito. Mesmo nas piores condições. Mesmo quando tudo parece contrário.

Em algumas áreas, surgem pequenos oásis. O verde tímido das plantações, o barulho discreto da água brotando do chão seco, crianças brincando sob o sol impiedoso — tudo isso cria um contraste quase poético. A escassez ensina as pessoas a cuidarem melhor do pouco que têm. Cada gota d’água vale ouro. Cada alimento cultivado é uma vitória. E, mesmo em meio à dureza, há generosidade. Há sorrisos, há gentileza, há humanidade.

Uma senhora que conheci em Toconao, um vilarejo feito de pedra vulcânica, me ofereceu um pedaço de pão com queijo de cabra e um pouco de chá de coca. Disse, com simplicidade: “No deserto, a gente aprende a dividir. Porque tudo aqui é raro, até a companhia.” Nunca vou esquecer essa frase.

Mas não pense que foi fácil. O Atacama também testa os nossos limites físicos e mentais. Enfrentei temperaturas que oscilavam de -7°C durante a madrugada a quase 30°C durante o dia. O ar rarefeito, acima dos 5.000 metros de altitude em lugares como os Gêiseres del Tatio ou as Lagunas Altiplânicas, me deixou com tonturas, náuseas e dores de cabeça. O nariz sangrava com frequência, e o vento seco queimava a pele. A sensação de estar fora da zona de conforto era constante — e estranhamente libertadora.

Houve momentos em que pensei: “O que estou fazendo aqui?” Mas logo vinha o silêncio do deserto, profundo, absoluto, e me trazia de volta ao agora. No Atacama, o tempo parece suspenso. O passado se mistura com o presente em pinturas rupestres, fósseis e histórias contadas por anciãos. E à noite, o céu… Ah, o céu!

Poucos lugares no mundo oferecem uma observação astronômica tão clara como o Deserto do Atacama. A ausência de poluição luminosa, a altitude elevada e o clima seco criam condições perfeitas para enxergar o universo. Deitei no chão frio, envolta em cobertores, e vi constelações que só conhecia dos livros. A Via Láctea era uma faixa brilhante rasgando o céu, e cada estrela parecia mais próxima, mais real. Era como se o universo respirasse junto comigo. Uma experiência mística, quase espiritual.

Essa viagem me transformou. Voltei diferente. Mais forte. Mais grata. Aprendi que a vida, mesmo nas piores condições, insiste em florescer. Que o essencial, muitas vezes invisível aos olhos, se revela quando estamos dispostos a enxergar com o coração.

O Deserto do Atacama me ensinou que, às vezes, é preciso passar pelo calor escaldante e pelo frio cortante para entender quem realmente somos. Que a beleza está nos contrastes, na resistência silenciosa, na simplicidade das coisas. Aprendi a admirar a força de um povo que, mesmo enfrentando a escassez de tudo, ainda é rico em humanidade. E compreendi que, no fundo, todos nós temos um pouco de deserto dentro de nós — seco, silencioso, mas esperando pela gota certa que fará brotar algo novo.

Hoje, quando fecho os olhos, ainda consigo ver o céu estrelado do Atacama, ouvir o sussurro do vento entre os vales, sentir o sal ressecando a pele e a alma sendo lavada por uma experiência única.

Vencer o Atacama não foi apenas uma conquista geográfica. Foi uma vitória interna. E por isso, levarei esse deserto comigo, para sempre.


Reflexão Final: Viver é Cruzar os Nossos Desertos


Viajar até o Deserto do Atacama me ensinou muitas coisas — sobre a natureza, sobre a vida, sobre o mundo — mas, acima de tudo, me ensinou sobre mim mesma. Estar naquele lugar extremo, fez com que eu entendesse que viver de verdade não é buscar conforto, mas sim, coragem.

Viver é sair da zona de conforto. É desafiar os próprios limites, físicos e emocionais. É dizer "sim" ao desconhecido, mesmo com o coração apertado, mesmo com medo. Porque é justamente aí, quando nos despimos do que nos é familiar, quando não há certezas nem mapas seguros, que descobrimos do que realmente somos feitos.

Todos nós carregamos desertos dentro de nós — medos, inseguranças, dúvidas — e muitas vezes passamos a vida inteira evitando cruzá-los. Mas quando finalmente nos permitimos atravessar esses vazios internos, algo extraordinário acontece. Crescemos. Evoluímos. Nos transformamos.

Conhecer novos lugares é muito mais do que acumular fotos ou carimbos no passaporte. É se permitir ver o mundo com outros olhos — e se ver de um jeito novo também. É compreender que há formas diferentes de viver, de amar, de ser feliz. É perceber que nossos problemas, por vezes, são pequenos diante da imensidão da vida que pulsa lá fora. É aprender com quem tem pouco, mas compartilha tudo. Com quem vive na escassez, mas transborda humanidade.

Cada passo fora do conhecido é um passo em direção a uma versão mais verdadeira de nós mesmos. Cada novo lugar nos ensina uma nova lição — sobre o outro, sobre a vida, e principalmente sobre quem somos quando estamos longe de tudo o que nos define.

No fim das contas, viver é isso: cruzar desertos. Encarar o medo. Confiar no caminho, mesmo quando tudo parece seco, duro, impossível. Porque é justamente nessas travessias que florescemos.


E você? Qual deserto ainda precisa atravessar?



Deserto do Atacama
Deserto do Atacama

 
 
 

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Sou médica de formação, inquieta, criativa e curiosa desde que nasci. Como aquariana raiz, adoro coisas novas, e liberdade é o meu nome. Sou cozinheira de fim de semana, aventureira de coração e viajante que adora passar por perrengues (quem nunca?). Criei o Entre Sabores e Sentidos para provar que cuidar da mente e do corpo pode ser tão prazeroso quanto experimentar um prato novo ou carimbar um passaporte. Em um mundo totalmente "conectado", a desconexão é a regra; tentar tornar esse mundo um pouco melhor e compartilhar informações relevantes foi o objetivo de criar este espaço.

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