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Por que revisitar o passado pode ser a chave para seguir em frente

  • Foto do escritor: R. Scharf
    R. Scharf
  • 21 de set.
  • 5 min de leitura

“Não é sobre chegar rápido, é sobre entender o caminho.”


O cinema sempre foi uma poderosa lente para enxergar camadas profundas da experiência humana. Em A Grande Viagem da Sua Vida (2025), dirigido por Sam Mendes e estrelado por Margot Robbie e Colin Farrell, essa lente se volta para algo íntimo e essencial: o processo de cura emocional.

Mais do que um romance com toques de realismo mágico, o filme se revela uma metáfora existencial sobre como lidamos com memórias, traumas, escolhas e os caminhos (por vezes tortuosos) que seguimos em busca de nós mesmos.


A narrativa: duas vidas cruzadas pela chance de revisitar o passado


Na trama, David e Sarah são dois estranhos que se conhecem por acaso durante um casamento. Logo após esse encontro, um misterioso GPS começa a guiá-los por uma viagem nada comum. Cada parada os leva a lugares profundamente conectados com suas próprias memórias: a infância de um, a perda da mãe do outro, um término mal resolvido, um sonho abandonado.

Tudo isso dentro de um carro alugado, que se torna cenário constante da jornada. O que poderia ser apenas um recurso de roteiro se transforma em um dos elementos simbólicos mais potentes do filme. O carro e o GPS ganham funções quase terapêuticas, conduzindo os personagens não apenas por estradas reais, mas por territórios emocionais que haviam sido evitados, esquecidos ou reprimidos.


O carro como metáfora do espaço terapêutico


Na psicologia, o espaço terapêutico é concebido como um lugar de acolhimento, segurança e introspecção. É onde o indivíduo pode baixar as defesas e revisitar suas dores sem medo de ser julgado ou interrompido. O carro em A Grande Viagem da Sua Vida cumpre exatamente essa função: é uma bolha temporária de segurança e movimento, na qual David e Sarah podem se revelar — para o outro e para si mesmos.

Ali, dentro do veículo, não há distrações do mundo externo. As conversas se tornam mais profundas. As memórias surgem sem serem interrompidas por notificações, compromissos ou ruídos. É como se a estrada em si criasse uma suspensão do tempo — uma pausa necessária para que o passado venha à tona.

Além disso, o fato de o carro ser alugado também carrega um simbolismo importante: esse suporte é temporário. Assim como na terapia, chega um momento em que o paciente precisa devolver o espaço, despedir-se do suporte externo e retomar a direção da própria vida com mais autonomia.


O GPS: autoconhecimento, intuição e o “não saber”


Se o carro representa o ambiente seguro da jornada emocional, o GPS é a própria jornada em si — e, mais especificamente, a jornada do autoconhecimento. Curiosamente, trata-se de um GPS antigo, com falhas, rotas misteriosas e instruções que muitas vezes parecem ilógicas ou contraditórias.

E aí está o ponto central: o autoconhecimento raramente é linear. Ele não oferece “rotas mais rápidas” ou “destinos mais eficientes”. Pelo contrário — o caminho é cheio de curvas, retornos inesperados, mudanças bruscas de direção. E isso é desconfortável.

Muitas vezes, os personagens se questionam: "Por que estamos indo para esse lugar?", "O que tem aqui para vermos?". E a resposta quase nunca é óbvia. Só após passarem pelo local, revisitarem uma memória ou enfrentarem um fantasma emocional, é que compreendem a importância daquela parada.

Esse processo lembra muito a terapia. Nem sempre sabemos por que certos temas surgem em determinadas sessões. Às vezes, é o inconsciente quem conduz. Outras vezes, é a própria resistência que nos leva por caminhos aparentemente inúteis, mas que guardam mensagens escondidas.

O GPS, então, torna-se símbolo da intuição, do inconsciente ou até de algo maior — um destino, uma espiritualidade, uma força organizadora que nos conduz a crescer, mesmo que à força.


A cena da devolução do carro: tempos diferentes de cura


Um dos momentos mais simbólicos do filme é quando os personagens devolvem o carro alugado. David devolve primeiro. Isso não significa que sua jornada está “concluída”, mas que ele já encontrou em si a capacidade de seguir sem o apoio externo. Ele já assimilou parte do que precisava saber.

Sarah, por outro lado, permanece com o carro por mais tempo. Ainda precisa daquele suporte. Sua história emocional ainda está em elaboração. Sua ferida ainda exige cuidado.

E isso toca num dos pontos mais importantes da saúde mental: cada pessoa tem seu próprio tempo de cura. 

Não existe um cronograma universal. Não se pode apressar o processo de elaboração emocional. O que para um pode levar semanas, para outro pode levar anos. E tudo bem.

Essa diferença entre os dois personagens reforça a ideia de que não há certo ou errado no processo terapêutico — apenas caminhos singulares, com velocidades próprias, cheios de pausas, retornos e descobertas inesperadas.


Portas, escolhas e a terapia como reconciliação com o passado


Outro elemento simbólico forte no filme são as portas. Elas aparecem de forma mágica em locais inesperados, funcionando como portais para memórias específicas dos personagens. Abrir uma porta é um gesto de coragem: exige disposição para enfrentar o que se tentou evitar por muito tempo.

Na psicologia cognitivo-comportamental, essa exposição voluntária a memórias difíceis pode ser justamente o que ajuda o paciente a reformular crenças disfuncionais, romper padrões destrutivos e desenvolver uma nova narrativa de si mesmo.

O filme não propõe mudar o passado. Nenhuma porta permite que os personagens “corrijam” decisões antigas. Mas, ao revisitarem essas experiências com novos olhos, eles conseguem ressignificar suas histórias.

Essa é, talvez, uma das mensagens mais potentes da obra: entender o passado não para voltar a ele, mas para libertar-se dele.


Amor e vulnerabilidade: uma estrada que se compartilha


À medida que a viagem avança, David e Sarah começam a construir uma relação marcada pela vulnerabilidade. Eles não se apaixonam pelos avatares sociais um do outro, mas pelas dores, pelos silêncios, pelos medos. É uma conexão que nasce da exposição emocional — algo raro, e por isso tão precioso.

O filme sugere que o amor verdadeiro exige esse tipo de entrega. Não é o amor que salva, como dizem os clichês. Mas é o amor que sustenta enquanto cada um faz o próprio trabalho interno de cura.


Uma viagem interna: cinema como espelho psicológico


No fim das contas, A Grande Viagem da Sua Vida é menos sobre deslocamento físico e mais sobre deslocamento interno. A estrada está lá, mas é a transformação emocional que guia tudo.

Ao devolver o carro, fechar a última porta e desligar o GPS, resta a pergunta: “E agora?”. Agora é hora de caminhar com os próprios pés, com mais clareza, com menos peso. A verdadeira viagem não termina com o filme. Ela continua em cada espectador que se permite refletir sobre suas próprias dores, memórias e recomeços.


Conclusão


Mais do que uma história de romance ou uma trama com elementos fantásticos, A Grande Viagem da Sua Vida é uma metáfora visual e emocional sobre o processo de cura. O carro, o GPS e as portas são símbolos que nos convidam a pensar sobre como lidamos com nosso próprio passado, com nossas feridas e com os caminhos que escolhemos — ou deixamos de escolher.

Assistir ao filme é, em si, um exercício de autorreflexão. É um lembrete de que todos estamos, de alguma forma, tentando entender o mapa da própria existência. E que, no fim, o que importa não é a perfeição da rota, mas a coragem de seguir.


Estrada da vida - Cada curva uma história.
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Sou médica de formação, inquieta, criativa e curiosa desde que nasci. Como aquariana raiz, adoro coisas novas, e liberdade é o meu nome. Sou cozinheira de fim de semana, aventureira de coração e viajante que adora passar por perrengues (quem nunca?). Criei o Entre Sabores e Sentidos para provar que cuidar da mente e do corpo pode ser tão prazeroso quanto experimentar um prato novo ou carimbar um passaporte. Em um mundo totalmente "conectado", a desconexão é a regra; tentar tornar esse mundo um pouco melhor e compartilhar informações relevantes foi o objetivo de criar este espaço.

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